sexta-feira, 24 de setembro de 2010

arroubos de uma moça triste ou da sexta-feira cinzenta

Ninguém devia tentar escrever se não tem nada a dizer... a não ser quem é pago para isso e não pode esperar pela conveniência da inspiração. É por isso que as crônicas ainda e sempre são capazes de me despertar tanto assombro. Porque têm hora e dia marcado para serem escritas. Porque surgem ali naquele espaço pré-determinado e fixo, com aquelas letrinhas contadas. Porque carregam essa aura de milagre, de escape da miséria diária de quem tem que escrever sem razão e sem vontade. Na mudança da Barão de Limeira para o Limão deixei os volumes de crônicas em casa... ficam aqui apenas os alfarrábios e tratados de artes cênicas. Aqueles compêndios modorrentos sobre a formação do ator, aqueles textos enfadonhos de novos e velhos dramaturgos.
É verdade que me sinto um pouco órfã sem o livrinho amarelado do Bandeira. E penso em trazer os pequenos volumes e espalhá-los pela mesa branca e triste de escritório. Colocá-los ao lado dos elefantinhos de madeira, da caixinha de papel em forma de coração, de todas essas quinquilharias que deixo por perto para me dar a impressão de que estou em casa, de que não sou estrangeira, de que estou fazendo o melhor que posso. O que é mentira. Mas, ao cabo, é preciso acreditar em alguma coisa. E trabalhar, talvez, para reinventar a criança que fui um dia. E honrá-la em alguma medida.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

afagos

Faz sol. E essa é sempre uma alegria. Não importa o que virá depois. Eu me contento com a luz da manhã, e a árvore diante da janela. E em ver os passantes que passam de outro jeito quando o céu não é cinza.
No trajeto diário, eu penso nas mesmas coisas, como se fosse eu mesma uma repetição da paisagem, e ensaio os mesmos diálogos. Corrigindo uma palavra aqui, outra acolá. Mas terminando sempre por olhar os trens indo embora da plataforma, como se tudo acabasse ali. E começasse de novo.
Hoje havia duas mensagens me esperando na caixa de emails. Dois afagos. Uma música para começar o dia. E um Rubem Braga.

O pavão

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Rubem Braga. Rio, novembro, 1958

terça-feira, 21 de setembro de 2010

a voz

Nos extremos, as palavras costumam faltar. Mas sempre há um consolo nas palavras de outrem. Descubro "As Brasas" com alegria, economizando nas páginas para que o livro não termine. Nesses intervalos, sacio a abstinência lendo trechos inteiros em voz alta, como se fossem minha voz.

“Às perguntas mais importantes sempre terminamos respondendo com nossa vida. O que dizemos nesse meio tempo não tem importância, nem os termos e argumentos com que nos defendemos. No final de tudo, é com os fatos de nossa vida que respondemos às indagações que o mundo nos faz com tanta insistência. E que são estas: Quem você é?... O que queria de verdade?... O que sabia de verdade?... A quem ou a quê foi fiel ou infiel?... Com quem ou com quê se mostrou corajoso ou covarde?... São essas as perguntas capitais. E cada responde como pode, com sinceridade ou mentindo; mas isso não tem muita importância. O que importa é que no final cada um responde com a própria vida.”

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

da arte de perder

"Temos dificuldade de compreender o significado verdadeiro dos atos e relações humanas. Por exemplo, alguém morre e você não entende. Ele foi enterrado e você
continua não sentindo nada. Perante o mundo você veste luto, olha para a
frente em público com uma seriedade solene, mas depois, em casa, só, você
boceja, coça o nariz, lê um livro, pensa mais em tudo e em todos do que no morto, por quem você veste luto. Você vive aparentemente em determinada condição, sombrio e enlutado, e por dentro você percebe surpreso que não sente nada, a não ser um alívio e uma satisfação culposa. E indiferença. Uma profunda indiferença. Isso dura algum tempo, dias, talvez meses. Você engana o mundo, vive numa manhosa indiferença. Depois um dia, muito mais tarde, passado os anos, quando o nariz do morto já caiu, você caminha na rua e fica tonto, se apóia no muro, porque compreende. O quê? O sentimento que o liga ao morto. O significado da morte. O fato, a realidade, a inutilidade de escavar com as unhas na terra tudo o que restou dele, você nunca mais poderá ver seu sorriso, e toda a sabedoria e poder do mundo são impotentes para que
ele, o morto, venha na sua direção na rua e sorria para você. Você pode
ocupar todas as regiões da Terra com um exército, nada vai ajudar. Então você
grita. Ou nem isso, apenas fica parado na rua, pálido, e sente um
vazio, como se o sentido do mundo se extinguisse, como se você tivesse
ficado só no mundo."

Sándor Marái

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

das combinações

O cheiro do cigarro me desagrada, mas fumo uns cigarros finos, finíssimos, que comprei no sábado. É um jeito de me sentir adulta, acho que pensei na hora. Daí, atravessei a rua, entrei na loja do posto de gasolina e pedi pelo maço e um isqueiro. Eu era obviamente uma fumante diletante. Iniciante. Ignorante dos rituais e dos segredos de um cigarro. Mas ele combinava tanto com o meu vestido de flapper, o meu colar de pérolas, o meu ar de patética autocomiseração. E, às vezes, é simplesmente bom que algumas coisas combinem.