quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Natal e guaraná

A cor pálida, as nuvens pesadas e o cheiro de umidade que impregnava o ar hoje lhe davam a impressão de reencontrar a cidade, de tê-la exatamente como na imagem primeira, 20 anos antes.
Ali, em sua lembrança mais remota, todas as ruas guardavam aquele mesmo tom acinzentado e a chuva estava sempre prestes a desabar.
Devia ser quase dezembro. Entrou no hospital, mas antes de se acomodar no quarto, lhe concederam um último jantar fora dali. Último desejo.
Era um restaurante simples. Acomodada numa mesa no canto do salão, pediu um guaraná, como de costume, e viu o céu pela janela gradeada.

domingo, 26 de outubro de 2008

perda

Cinza. Chovia e ela se cansou de andar, passou o dia a se sentir culpada pelo tédio que não deveria estar ali, a lhe turvar as sensações, a atrapalhar as emoções que, sim, ela deveria sentir. Ao ter diante de si tantos quadros que amava, tantas cores e traços, esteve desnorteada. Queria ser capaz de sentir mais, de ver mais. A vida, no entanto, estava lá para deixar nítida sua incapacidade, a falta de jeito para o amor, das coisas e das pessoas. Só despertou da anestesia quando atravessou a ponte. Estava ali, bem no meio do caminho, quando o sol abriu. As águas pardas ganharam certo tom de verde, e ela pensou na beleza inteira que cabia na palavra "rio". Ao longe, uma cúpula dourada, que esteve apagada durante todo o dia, ganhava luz própria, e compunha a paisagem. As folhas, amarelas, vermelhas e verdes, surgiam ressaltadas em suas cores. Uma vez mais, contudo, ela teve medo de perder, e não foi capaz de esquecer de si. O sol iria embora, o momento iria se misturar a tantos outros momentos indistintos, mas ela não sabia o que ver, não sabia o que guardar.

banquinho

A falta de jeito, as palavras que não sabia encontrar. E olhava para baixo, sem coragem para lhe mirar os olhos, sem saber se aceitava ou repelia a mão pousada sobre a dela. Pensou em lhe escrever, dizer tudo de outra maneira, mas é como se os fatos tombassem sobre ela. Como se o olhar que ele, fechado em mil camadas sobre si mesmo, lançava sobre as coisas não deixasse nenhum espaço para que tudo fosse diferente

à primeira vista

Parecia tolo apelar para terceira pessoa, mas estava cansada de dizer e de se ouvir dizendo: eu, eu, eu. Durante toda a manhã, uma manhã de sol e calor, perdeu-se em pensamentos inúteis, em detalhes insignificantes, e escrevia mentalmente cada uma das suas impressões sobre o trajeto, aquele caminho tão familiar, que fazia parte de sua paisagem desde que se mudara para aquela cidade.
Lembrava de ter passado por ali tantas vezes. Há dez anos, ela pensou naquele dia de luz pegajosa, cruzara aquela rua de braço dado com o novo amigo. Ele hoje é uma parte dela, um afeto sólido e constante, uma certeza da sua capacidade de se ligar ao outro. Mas, talvez, já o amasse ali. Na história que construiu para os dois (porque ela vive a florear o passado), gosta de pensar que o amou desde o primeiro dia, quando a grande porta de vidro do museu se abriu e ele apareceu, branco, com uns óculos que lhe emprestavam um ar desajeitado e doce.

sábado, 25 de outubro de 2008

fotografia

Nao quero nunca esquecer de sentir saudade. No meio da noite, abro o álbum de fotografias. Ressinto-me do fato de serem tão poucas. Queria ter sua imagem de manhã, o jeito de caminhar pela casa, de ser feliz com as coisas pequenas. Eu ainda tenho a caixinha de madeira, tão pequena, guardada comigo e lá deixo a vida inteira.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

ensaio

"Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é bem a palavra certa, porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é nossa vida não é o esboço de nada, é o esboço sem quadro”.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

hoje

Precisava de um poema ontem. Um novo. Os antigos não serviam, nem os trechos de livros que tenho marcados para reler em determinadas situações. Não muda muita coisa, continua a falta de jeito, a sensação de que me perco em voltas inúteis. Mas o poema precisava ser outro e carregar a leveza que me falta.

Canção do dia de sempre

"Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas"

do colégio

Não consigo escapar do passado e daquela carteira escolar. Como se desde então eu estive sem lugar. Uma manhã de 1994, eu acho. Tínhamos que ler os dois poemas e não sei ao certo por que me lembro deles de quando em quando.

"se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse
e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra para doer
doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos esta dor sangrasse"


"Chora de manso e no íntimo... procura
curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.
Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será ela só tua ventura...
A vida é vã como a sombra que passa
Sofre sereno e de alma sombranceira
Sem um grito sequer tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira..."

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

cartas

Passei a acreditar (ou fingir que acredito) que Rilke me salvou do ridículo das pretensões literárias. Nunca apreciei realmente nada do que escrevi. Meu pendor para ficção é nulo (não consigo sair de mim), os poemas sempre me soaram canhestros, desajeitados.
A livraria ficava em uma travessa da Champagnat, acho que era Antônio Ataíde o nome da rua. Os livros estavam em liquidação e saí de lá com uma seleta de poemas do Shakespeare, o quarto volume do Proust, "Sodoma e Gomorra" (nunca entendi por que começar pelo quarto volume...) e as tais "Cartas a um Jovem Poeta".
Já na primeira carta, uma frase provocou-me um dos aqueles assombros irremediáveis e, desde então me persegue, retornando como um fantasma, de quando em quando.
"Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério - o único existente".
A constatação de que nunca precisei escrever, assim como nunca tive verdadeira necessidade de nada _uma pessoa, um gesto, uma sensação_ passou a me assombrar. E vivo a maldizer essa impressão de ser capaz de sobreviver. De continuar. Não importa se mais ou menos feliz, mas, de qualquer maneira, imune a todas as perdas.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

1998

Voltei de uma pausa para o café e encontrei a mensagem dele. O título era um daqueles diminutivos que a gente teima em usar há anos... Virgininha. Mandou-me uma música do novo disco da Virgínia Rodrigues, voz que me leva imediatamente dez anos para trás, para a imensa varanda diante do mar, nossas conversas atravessando as madrugadas, o banho salgado antes do amanhecer, as coisas que nos faziam rir e chorar.

"Senti uma vontade muito muito grande de lhe enviar esta música, porque a ouço imaginando que você ouve junto, e que de algum jeito somos os mesmos". Ele escreveu e eu tive ainda mais medo de me perder.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

plágio

Tenho vontade de copiar poemas dos outros. Um incansável desejo de copiar, de achar palavras certas, de acertar quando e como dizer. Daí meus diálogos imaginários, esse ensaio constante com meus supostos interlocutores. E em silêncio eu falo tanto, que termino por crer, às vezes, que já contei, dezenas de vezes, aquilo que, em verdade, nunca cheguei de fato a dizer.

do caderno

Trazia o poema anotado no caderno. Lembro bem da letra e da cor da tinta da caneta. Era um caderno grande, velho e gasto já na primeira semana de uso, no qual anotava coisas sem importância e contava, sempre com floreios, seus preciosos fatos prosaicos.

"Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não".