sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

de novo

O ano acaba hoje. Logo mais. Tomei café na padaria só para fazer de conta que era um dia diferente. Para usar o chapéu novo. Para andar ao sol. Depois, peguei um táxi para vir trabalhar. Porque era dia de pequenos luxos, pequenos mimos, pequenos e frágeis consolos pelo ano que termina. Amanhã tudo será igual. Mas a gente finge que não. Que tudo termina e começa de novo. Acredita que é possível esquecer. E continuar. Sem endurecer, sem secar.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

da aprendizagem sem o livro dos prazeres

Um dia a gente acorda e percebe tudo que não vai aprender nunca. Se não foi até agora, não será. Não será mais. Você não vai dançar. Nem aprender a falar sem mover as mãos. Nem mentir sem sofrer. Um dia você acorda e percebe que não tem importância. Que pode continuar só ouvindo a música. Que pode balançar os braços e que o estranho seria deixá-los imóveis. Que pode mentir e pode sofrer. E não mentir, e sofrer também.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

as flores da tarde

Disse para o carro parar. Porque queria descer ali mesmo. Para andar nas alamedas do cemitério e ver as flores nas bancas. Encher os braços com ramalhetes imensos e desajeitados. Sentir o cheiro dos crisântemos. Cheiro de morte. Sentar num banco de cimento quente e esperar a chuva lavar o ano.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

da poligamia

Esse negócio de ter dois blogs é complicado. É quase como poligamia. Alguém sempre sai prejudicado. Geralmente, quem chegou antes... no caso este correio. A falta de ânimo para qualquer coisa que não seja pilhéria também não ajuda muito, é preciso dizer. Mas é segunda-feira e aquele senso de dever baixa sobre nós como uma condenação. Você precisa trabalhar mais, diz a voz em tom imperativo. Você precisa escrever mais. Você precisa ler mais. Você precisa beber menos. Você não está dando atenção para o Luís. Você sempre lembra de ligar pra o Caetano quando não dá mais para ligar. Você precisa ser menos ácida. Devia pintar as paredes do apartamento antes do Natal. O que você vai fazer no Natal? Está na hora de organizar o grande convescote de fim de ano. Será que todo mundo vai? Será que compro as mesma flores ou mudo a cor? O Ano Novo vai ser sem graça. Sempre é. Mas você não gosta de réveillon, lembra? É, você gosta de Natal. É? Talvez. Você está quase esquecendo, quase esquecendo. Estava fazendo sol. Mas da janela agora só dá para ver o céu cinza e todos os carros do mundo passando. O rio é sujo. Mas é bom que ele exista. Eu me acho sempre tola quando olho para o rio e acho que mesmo feio ele é bonito. Não bonito. Não. Mas tem alguma coisa de agradável. O sol vai voltar. Vai? À noite não pode fazer frio. O vestido é curto, sem mangas. Quase parei de roer as unhas. Quase mesmo. Mas tudo pode quebrar de uma hora para outra. Sem aviso. As unhas estão sem cor. Acho que não posso usar sandália. Arranquei a carne dos dedos até sair sangue. A camisola azul ainda está embrulhada em papel de seda na gaveta. Não preciso reler a sua carta. Eu tento não lembrar todas as palavras, mas a memória trai a gente. Trai.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

do perigo dos postes

Era só evitar aquele poste, daquela rua. No mais, estava tudo bem. Tudo bem, ela repetia religiosamente todas as manhãs. E suspirava aliviada sempre que lembrava que estava quase esquecendo. Quase esquecendo. Não devia se demorar muito no banho, nem abrir as gavetas onde deixava guardado ainda o pouco que não conseguiu jogar fora. Se tivesse esses cuidados, podia viver como antes. Podia ao menos deixar de lembrar. Era só evitar o poste. Só aquele poste, daquela rua. Lá, a mulher brincou com o bebê. Brincou de esconder-se. Sorriu. Era jovem naquele dia. Muito jovem. E ali foi feliz pela última vez. Escondida atrás de um poste baldio, de uma rua sem importância.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

dos sonhos

Como estou sempre atrasada e apressada, mesmo quando não estou fazendo nada, costumo deixar este correio sempre para depois. "Para um dia em que estiver com mais tempo. Para um dia em que estiver mais inspirada. Para um dia em que tenha vontade de escrever sobre alguma coisa." Não é o caso. Nunca é.
Não consigo voltar para casa. Não consigo passar a noite olhando as paredes sujas, aquele sofá velho que não reconheço mais como meu, a cama e as estantes sempre em desordem. Hoje sonhei que havia um homem morto na banheira. Estava em um quarto de hotel, em uma cidade estranha, e tinha medo de partir. Era um homem qualquer. Um homem indefinido. Que eu não me lembrava de ter conhecido, nem me lembrava de ter ferido. Mas jazia morto, no quarto, e não me deixava ir embora.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

arroubos de uma moça triste ou da sexta-feira cinzenta

Ninguém devia tentar escrever se não tem nada a dizer... a não ser quem é pago para isso e não pode esperar pela conveniência da inspiração. É por isso que as crônicas ainda e sempre são capazes de me despertar tanto assombro. Porque têm hora e dia marcado para serem escritas. Porque surgem ali naquele espaço pré-determinado e fixo, com aquelas letrinhas contadas. Porque carregam essa aura de milagre, de escape da miséria diária de quem tem que escrever sem razão e sem vontade. Na mudança da Barão de Limeira para o Limão deixei os volumes de crônicas em casa... ficam aqui apenas os alfarrábios e tratados de artes cênicas. Aqueles compêndios modorrentos sobre a formação do ator, aqueles textos enfadonhos de novos e velhos dramaturgos.
É verdade que me sinto um pouco órfã sem o livrinho amarelado do Bandeira. E penso em trazer os pequenos volumes e espalhá-los pela mesa branca e triste de escritório. Colocá-los ao lado dos elefantinhos de madeira, da caixinha de papel em forma de coração, de todas essas quinquilharias que deixo por perto para me dar a impressão de que estou em casa, de que não sou estrangeira, de que estou fazendo o melhor que posso. O que é mentira. Mas, ao cabo, é preciso acreditar em alguma coisa. E trabalhar, talvez, para reinventar a criança que fui um dia. E honrá-la em alguma medida.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

afagos

Faz sol. E essa é sempre uma alegria. Não importa o que virá depois. Eu me contento com a luz da manhã, e a árvore diante da janela. E em ver os passantes que passam de outro jeito quando o céu não é cinza.
No trajeto diário, eu penso nas mesmas coisas, como se fosse eu mesma uma repetição da paisagem, e ensaio os mesmos diálogos. Corrigindo uma palavra aqui, outra acolá. Mas terminando sempre por olhar os trens indo embora da plataforma, como se tudo acabasse ali. E começasse de novo.
Hoje havia duas mensagens me esperando na caixa de emails. Dois afagos. Uma música para começar o dia. E um Rubem Braga.

O pavão

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Rubem Braga. Rio, novembro, 1958

terça-feira, 21 de setembro de 2010

a voz

Nos extremos, as palavras costumam faltar. Mas sempre há um consolo nas palavras de outrem. Descubro "As Brasas" com alegria, economizando nas páginas para que o livro não termine. Nesses intervalos, sacio a abstinência lendo trechos inteiros em voz alta, como se fossem minha voz.

“Às perguntas mais importantes sempre terminamos respondendo com nossa vida. O que dizemos nesse meio tempo não tem importância, nem os termos e argumentos com que nos defendemos. No final de tudo, é com os fatos de nossa vida que respondemos às indagações que o mundo nos faz com tanta insistência. E que são estas: Quem você é?... O que queria de verdade?... O que sabia de verdade?... A quem ou a quê foi fiel ou infiel?... Com quem ou com quê se mostrou corajoso ou covarde?... São essas as perguntas capitais. E cada responde como pode, com sinceridade ou mentindo; mas isso não tem muita importância. O que importa é que no final cada um responde com a própria vida.”

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

da arte de perder

"Temos dificuldade de compreender o significado verdadeiro dos atos e relações humanas. Por exemplo, alguém morre e você não entende. Ele foi enterrado e você
continua não sentindo nada. Perante o mundo você veste luto, olha para a
frente em público com uma seriedade solene, mas depois, em casa, só, você
boceja, coça o nariz, lê um livro, pensa mais em tudo e em todos do que no morto, por quem você veste luto. Você vive aparentemente em determinada condição, sombrio e enlutado, e por dentro você percebe surpreso que não sente nada, a não ser um alívio e uma satisfação culposa. E indiferença. Uma profunda indiferença. Isso dura algum tempo, dias, talvez meses. Você engana o mundo, vive numa manhosa indiferença. Depois um dia, muito mais tarde, passado os anos, quando o nariz do morto já caiu, você caminha na rua e fica tonto, se apóia no muro, porque compreende. O quê? O sentimento que o liga ao morto. O significado da morte. O fato, a realidade, a inutilidade de escavar com as unhas na terra tudo o que restou dele, você nunca mais poderá ver seu sorriso, e toda a sabedoria e poder do mundo são impotentes para que
ele, o morto, venha na sua direção na rua e sorria para você. Você pode
ocupar todas as regiões da Terra com um exército, nada vai ajudar. Então você
grita. Ou nem isso, apenas fica parado na rua, pálido, e sente um
vazio, como se o sentido do mundo se extinguisse, como se você tivesse
ficado só no mundo."

Sándor Marái

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

das combinações

O cheiro do cigarro me desagrada, mas fumo uns cigarros finos, finíssimos, que comprei no sábado. É um jeito de me sentir adulta, acho que pensei na hora. Daí, atravessei a rua, entrei na loja do posto de gasolina e pedi pelo maço e um isqueiro. Eu era obviamente uma fumante diletante. Iniciante. Ignorante dos rituais e dos segredos de um cigarro. Mas ele combinava tanto com o meu vestido de flapper, o meu colar de pérolas, o meu ar de patética autocomiseração. E, às vezes, é simplesmente bom que algumas coisas combinem.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

do plágio

Ele disse que queria ser feliz naquela noite. Daí resolveu comprar um queijo de cabra, um lambrusco e um häagen-dazs de morango. E que mal há, eu me pergunto, em se plagiar ideias de felicidade?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

na mesma toada

"Todas as palavras boas estão pálidas de exaustão.
Flores, lua, olhos, lábios.
Eu gostaria de escrever como se a literatura nunca tivesse existido
Eu não consigo;
A ironia devora as palavras.
É a maneira mais fácil de superar a dificuldade de se descrever as coisas
Mas mesmo assim, neste instante,
uma enorme lua está despontando na minha janela.
Aqui, ela não é autêntica.
Minha casa é longe.
Me permita ser sentimental.
Eu estou só"

Viktor Shklovsky

terça-feira, 17 de agosto de 2010

da inutilidade das palavras ou da necessidade de invenção de um novo idioma

Só sei copiar poemas. As palavras não servem mais. Estão todas gastas. E falham. E faltam. Não sabem dizer de todo o amor.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

das ilusões perdidas

Tinha delírios infantis com o Jornal do Brasil. Nas viagens dos Figueiredo de Menezes à antiga capital da República, sempre que passava diante do prédio imenso da redação, imaginava-se adulta, repórter, sentada cheia de fleuma diante da máquina de escrever. Para levar a cabo o plano, seu primeiro passo, aos nove anos, foi convencer a mãe de que a datilografia convinha mais ao seu physique du rôle do que o balé. Mas seus percalços estavam apenas por começar. Depois de cinco amargas lições com a Olivetti, foi devolvida pela professora à mão materna com a sentença definitiva: “ela é incapaz, minha senhora”. Ontem, passados mais de vinte anos, viu seu sonho de menina ruir de vez com a notícia da morte do velho JB. E ela, quem diria, acabaria mesmo é no Limão.

terça-feira, 6 de julho de 2010

a velha senhora em sua visita à antiga capital da República

Seria capaz de pagar só para ter companhia no almoço de hoje. Nunca li tanto jornal durante as refeições. E foi assim também no domingo, em minha passagem relâmpago pelo antigo estado da Guanabara. Abandonei o nababesco desjejum do hotel, a vista para o mar de Copacabana, só para passar a manhã entre xícaras naquele café do parque Lage. E lá fiquei, espremida entre as páginas de O Globo _com debates dos presidenciáveis e as querelas políticas de costume_, a entrever pelo canto do olho, a assistir como espectadora acomodada à plateia, ao jeito carioca de ser feliz.
Muitos sorrisos, crianças rosadas em profusão, sol. E eu a me perguntar: como é que essa gente faz para viver nessa cidade? Como é que se chora, como é se sofre no Rio de Janeiro?

terça-feira, 15 de junho de 2010

Seriíssima, senhores

As mui estimadas Marília, Alessandra e Adriane travam discussões no tal facebook sobre a necessidade do gosto masculino pelo esporte bretão. Ora, vejam. Tive mesmo ímpeto de responder `as moçoilas, mas refreei meus impulsos diante do temor da represália de alguma feminista ressentida (relevem o inevitável pleonasmo).
Fato é que o caso não merece elucubrações alongadas ou rasgos de melodrama. Está certo que um homem deve gostar de futebol, assim como é certo que semelhante predileção não cabe ao sexo oposto. Uivos e gritos agudos foram ouvidos essa tarde. Onde já se viu? Uma senhora que não sabe reconhecer a sua insignificância perante a esse ritual de afirmação da masculinidade, não merece chamar-se mulher, senhores. Que se retire. Vá para cozinha, em silêncio obsequioso, busque a cerveja e frite o torresmo. E tenho dito.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

da vida do outro lado do rio ou a Scarlett O'Hara da Casa Verde

3 meses para os 30.
E eu gasto a sexta-feira à noite comprando um aquecedor no supermercado. Hipermercado. Chove. E prometo que nunca, jamais sentirei frio novamente.

sábado, 22 de maio de 2010

o porvir

"Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã..."

domingo, 16 de maio de 2010

colombina

Adeus, palhaço, vou-me embora com pierrô.

sábado, 8 de maio de 2010

tempo, tempo, tempo

No transporte coletivo, enquanto olhava o mundo pela janela, o pragmatismo chamou-me. Fez-me sacar o jornal da bolsa, abrir nas páginas que restavam para ler do caderno internacional, mas, de súbito, resolvi que não. Hoje, não. O negócio era dar de ombros para a urgência do noticiário e separar um tempo, tempo para simplesmente ser feliz.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

presente

Em uma caderneta eu escrevi, sem muito método, um pequeno diário de viagem. Descrições sem muito élan, pedaços de acontecimentos, impressões. Era só um jeito de deixar rastros para memória, pistas para poder reconstruir, de algum jeito e em algum momento, o que foram aqueles dias.
Porque os dias, enquanto são dias a atravessar, aparecem salpicados de pequenas imperfeições, de palavras e imagens fora de lugar, de cenas que deveriam ter tido prólogo e trilha sonora, mas não tiveram. Porque sou um pouco incapaz de estar no presente, porque parece que existe sempre uma névoa espessa, persistente, a recobrir o agora.
O diário é então a possibilidade de alimentar a memória para que ela devore tudo e edite o tempo, um tempo em que eu me senti cansada, melancólica ou com vontade de dormir no meu travesseiro sem ver ninguém, mas que poderá ser evocado, em breve, como a primavera em que deitei na grama e contemplei Florença, e corri sorrindo tolamente pela piazza San Marco e descobri que andar pela rua dos Douradores é como voltar para casa.

sábado, 3 de abril de 2010

Partida lusitana

Adormecer


"Preciso de te tocar
caule
gato
corda
mão
abraço-te
a tua roupa
tu
não te divulgo
o teu nome..."

Adilia Lopes

quinta-feira, 1 de abril de 2010

despertar em veneza

E, como se despertada de um sono longo, um sono de anos, descobria que todo, todo o tempo é tempo de querer

domingo, 28 de março de 2010

nudez

A mesa balançava um pouco. E, mesmo parada, eu também tremia. Lá estava, desfiando um rosário chato e interminável de histórias tristes, descoberta em minha nudez que eu julgava tão bem coberta de panos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

lições de Mencken

"A monogamia, em suma, mata a paixão _ e a paixão é o mais perigoso de todos os inimigos da suposta civilização, a qual é baseada na ordem, no decoro, na repressão, na formalidade, no trabalho e na disciplina.
O homem civilizado _ o homem civilizado ideal_ é aquele que nunca sacrifica a segurança dos seus por paixões particulares."

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

a velha senhora passeia desacompanhada pela Barão de Itapetininga

As obrigações de ocasião não deixam tempo para flanar pela cidade, andar a esmo pelos lugares que gosta e traz presos à memória. São pequenos cantos de pequenas ruas, são esquinas e praças e vitrinas. São pedaços tão vivos na lembrança que daria mesmo para esquecer que não passava por ali fazia uns tantos anos.
Descobre que ainda há engraxates no centro da cidade. E ambulantes a vender quinquilharias. Há mulheres, de unhas longas e vermelhas, que fumam recostadas no poste, alheias. E pedras, que desde sempre estão soltas na calçada para gente tropeçar. Dentro da galeria, no fundo de um corredor, a velha livraria também persiste. Os títulos nas lombadas dos livros, todos em francês. O chão róseo de mármore.
E deixa de andar um instante para tentar imaginar que impressão teria agora se olhasse tudo pela primeira vez, se aquela visão não estive impregnada a tantas outras, perdidas no tempo. Se aquelas não fossem as ruas em que foi feliz com ele. As ruas nas quais foi igualmente infeliz, com e sem ele.

domingo, 3 de janeiro de 2010

inútil paisagem

Talvez, se não fosse tempo de festas, a gente teria vergonha de confessar que perde horas vendo o mundo da janela, que acha bonito ficar espiando a poeira cobrir os móveis, o gelo derreter dentro do copo. Que fica pensando que só se está só ou acompanhado dentro de si mesmo.

Chovia no dia primeiro. E eu, da janela do apartamento, via que eles caminhavam. Andavam lado a lado na calçada. Ela, na parte de dentro; ele, rente ao meio-fio. Como deve ser, como um homem e uma mulher estão destinados a caminhar desde tempos imemoriais. Era uma tarde escura. A chuva não era fina nem espessa, eles não tinham pressa, mas também não vagavam sem destino. Ou será que alguém ainda sai para passear na chuva?

Eles simplesmente andavam. Sem os braços dados, sem as mãos apegadas, sem falar. Eram dois, protegidos cada qual pelo seu guarda-chuva. Um homem e uma mulher que sabiam caminhar, que não se olhavam durante o trajeto, que não se tocavam, mas que pareciam estar seguindo, naquele primeiro dia do ano, em uma mesma direção.