sábado, 6 de dezembro de 2008
ouvindo carlos gardel
Ao entramos no quarto do hotel, fez-me profundamente infeliz a parede que dava para a janela. Não importava mais a sua presença, a vertigem da véspera, a expectativa da vida inteira pela frente. Era só na parede que eu pensava, na parede a encobrir a paisagem, a fazer o quarto triste, cinza. A encher de nódoas a história sonhada e ensaiada tantas e tantas vezes ao longo dos anos. Descobri ali como detalhes fúteis, infinitamente fúteis e ínfimos, são capazes de arruinar minha frágil felicidade.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
5
Foi só andando naquela calçada e revendo tudo sem espanto que me dei conta do aniversário tão próximo. Voltei, então, às cartas antigas e descobri que lhe escrevi assim...
Você veio do nada e foi exatamente lá que nos encontramos. Havia diante de nós a porta, a rua. Chovia a cântaros. Era preciso ter cuidado. A água escorria e podia molhar tudo. Era preciso ter mãos e pés sob controle. Traí-me pelo olhar e nele me entreguei a você. Eu? Quem olhou antes? Quem foi em direção a quem no beijo primeiro? Não, ninguém sorriu pela primeira vez. Sorrimos juntos.
Você veio do nada e foi exatamente lá que nos encontramos. Havia diante de nós a porta, a rua. Chovia a cântaros. Era preciso ter cuidado. A água escorria e podia molhar tudo. Era preciso ter mãos e pés sob controle. Traí-me pelo olhar e nele me entreguei a você. Eu? Quem olhou antes? Quem foi em direção a quem no beijo primeiro? Não, ninguém sorriu pela primeira vez. Sorrimos juntos.
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
dias
Sem tempo para escrever. O diário também permanece em branco. Em quase dois anos, acumulei só umas dezenas de páginas. Todas tão iguais. E ao relê-las me confronto sempre com um certo fastio, um cansaço da minha repetição, da minha constante falta de preparo para a vida.
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
o caderno da ME
Ontem à noite, lendo uma revista, descobri o endereço do caderno do Saramago, seu blog, sua página infinita na internet. Uma única e longa postagem por dia.
E ele falava de São Paulo e da chuva e da tragédia de Santa Catarina e da coletiva de imprensa.
Não sei escrever sobre os dias, o que está fora de mim e ocupa-me quase o tempo todo. Levo muito tempo para dizer de cada impressão, de cada pensamento que me atravessou enquanto tentava ler o jornal no carro que balançava. A manhã atrapalhada. Escutei "Somewhere Over the Raibow" com a Sarah Vaughan antes de colocar as lentes de contato. Não tomei café da manhã. O taxista não sabia para onde eu ia. No divã, contei as mesmas coisas. "Talvez você não queira estar satisfeita", acho que foi assim que ele disse.
E ele falava de São Paulo e da chuva e da tragédia de Santa Catarina e da coletiva de imprensa.
Não sei escrever sobre os dias, o que está fora de mim e ocupa-me quase o tempo todo. Levo muito tempo para dizer de cada impressão, de cada pensamento que me atravessou enquanto tentava ler o jornal no carro que balançava. A manhã atrapalhada. Escutei "Somewhere Over the Raibow" com a Sarah Vaughan antes de colocar as lentes de contato. Não tomei café da manhã. O taxista não sabia para onde eu ia. No divã, contei as mesmas coisas. "Talvez você não queira estar satisfeita", acho que foi assim que ele disse.
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
história de quinze dias
Repetidas vezes não sei como começar. Não descubro uma primeira frase para o texto, não consigo encontrar um jeito de dizer. Por isso resolvi trazer o livro e deixar na minha mesa, ao lado dos compêndios de teatro. Quando a sensação de estar perdida volta, eu recorro ao volume de capa dura, papel jornal, páginas amareladas.
Ao folheá-lo hoje, dei com a crônica "Aquiles, Enéias, Dom Quixote, Rocambole". As palavras todas perfeitamente encadeadas, tudo tão simples e claro. Mas, eis que na página seguinte despontam as pétalas secas de alguma rosa vermelha que devo ter guardado ali há alguns anos. Parei de ler para pensar em quanto gosto das flores que guardo dentro de livros, em quanto gosto de descobri-las assim, por acaso, e, quando retornei à história, percebi no pé da página, página 72, a frase que resolvi guardar para o dia: "Ao cabo, tudo é admirar".
Voltei então para a página em branco, para me entregar às tarefas diárias mesmo sem inspiração.
Ao folheá-lo hoje, dei com a crônica "Aquiles, Enéias, Dom Quixote, Rocambole". As palavras todas perfeitamente encadeadas, tudo tão simples e claro. Mas, eis que na página seguinte despontam as pétalas secas de alguma rosa vermelha que devo ter guardado ali há alguns anos. Parei de ler para pensar em quanto gosto das flores que guardo dentro de livros, em quanto gosto de descobri-las assim, por acaso, e, quando retornei à história, percebi no pé da página, página 72, a frase que resolvi guardar para o dia: "Ao cabo, tudo é admirar".
Voltei então para a página em branco, para me entregar às tarefas diárias mesmo sem inspiração.
sábado, 22 de novembro de 2008
sábado
Desaprendi tanta coisa. Esqueci a dicção da sua voz, não sei mais escrever a caneta, no papel. Deslizo pelos dias sem me dar conta do que se passa, tomada por sensações tolas, temendo as horas que escapam. E há uma vontade _inútil_ de guardar esses pedaços menores de tempo que necessariamente se esvaem e se dissolvem indiferenciados.
terça-feira, 18 de novembro de 2008
mais do mesmo
Há meios de se dissimular uma separação, de se lhe acostumar com a idéia, de a ir gastando aos poucos. Revestindo-a de certeza, dando-lhe data, cobrindo-a de vaivéns e preparativos. É possível ir gastando-a para que não sobre inteira, para que não a possamos ter ali, concentrada em um momento único e irreparável.
Mas parece de pouca valia a estratégia. Ainda assim, ainda que gasta e certa, a perda é sempre perda. Ainda que passageira, sempre irremediável, sempre sem retorno. As despedidas, mesmo as esperadas, restarão para sempre como despedidas. O que tínhamos e deixamos de ter. Ainda que tenha sido por tempo breve, e dali a anos, nada nos diga, assim o teremos na memória, assim o guardaremos_como perda.
Mas parece de pouca valia a estratégia. Ainda assim, ainda que gasta e certa, a perda é sempre perda. Ainda que passageira, sempre irremediável, sempre sem retorno. As despedidas, mesmo as esperadas, restarão para sempre como despedidas. O que tínhamos e deixamos de ter. Ainda que tenha sido por tempo breve, e dali a anos, nada nos diga, assim o teremos na memória, assim o guardaremos_como perda.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
aprendizagem
"Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morrem o peixe e Oscar Wilde"
domingo, 16 de novembro de 2008
doçura
O ressentimento tão grande com as perdas, mas também a facilidade com que as aceito, talvez possa ser explicado pela minha natureza, eminentemente nostálgica.
Em verdade, consigo ter saudade de quase tudo, e me agrada que assim seja. No mais das vezes, só sei e só me interesssa aquilo que já está em mim _o que experimentei e transformei em lembrança_ porque é só assim que sinto o gosto. O gosto do tempo.
O seu doce, o seu amargo doce que sei suportar sem ter vontade de fugir. Na memória, as tintas são mais fortes, mas meu olho as sabe melhor e não se deixa ofuscar. Há certeza. Há certeza de que o passado existe, mas e o resto? O resto, não.
Em verdade, consigo ter saudade de quase tudo, e me agrada que assim seja. No mais das vezes, só sei e só me interesssa aquilo que já está em mim _o que experimentei e transformei em lembrança_ porque é só assim que sinto o gosto. O gosto do tempo.
O seu doce, o seu amargo doce que sei suportar sem ter vontade de fugir. Na memória, as tintas são mais fortes, mas meu olho as sabe melhor e não se deixa ofuscar. Há certeza. Há certeza de que o passado existe, mas e o resto? O resto, não.
ana cristina cesar
"Tenho uma folha branca e limpa à minha espera: mudo convite
tenho uma cama branca e limpa à minha espera: mudo convite
tenho uma vida branca e limpa à minha espera."
tenho uma cama branca e limpa à minha espera: mudo convite
tenho uma vida branca e limpa à minha espera."
sábado, 15 de novembro de 2008
basta um dia
uma vontade de me prender em miudezas, em detalhes completamente banais, vontade de ser feliz só porque a cor da árvore hoje era tão bonita.
Sempre que acordo cedo me convenço da beleza que só existe nas primeiras horas da manhã e me prometo que irei mudar os horários e despertar uma hora antes do normal só para ficar olhando a luz. A promessa é vã e passa. Sempre passa. Mas essa alegria matinal _uma alegria breve e sem razão_ me fez querer escolher palavras simples para o dia e me deter nas coisas pequenas, no desejo de andar de chinelo e vestido branco no fim da tarde.
Sempre que acordo cedo me convenço da beleza que só existe nas primeiras horas da manhã e me prometo que irei mudar os horários e despertar uma hora antes do normal só para ficar olhando a luz. A promessa é vã e passa. Sempre passa. Mas essa alegria matinal _uma alegria breve e sem razão_ me fez querer escolher palavras simples para o dia e me deter nas coisas pequenas, no desejo de andar de chinelo e vestido branco no fim da tarde.
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
teatro sem cor
O convívio com o outro nada mais é que um grande jogo de esconder-se. Trata-se de esconder primeiro os maus hábitos; depois o próprio corpo; os defeitos ou aquilo que se julga como tal; o que se pensa e não se diz e, especialmente, o que se sente e não se admite. Como defesa, armamo-nos da falsidade nossa e da alheia.
Admiráveis os que mentem, os que são capazes de mentir tão completamente que acabam aceitando como verdade e como vida aquilo que não são. Tenho sido atriz, sempre e a valer. Hoje, não pude.
Admiráveis os que mentem, os que são capazes de mentir tão completamente que acabam aceitando como verdade e como vida aquilo que não são. Tenho sido atriz, sempre e a valer. Hoje, não pude.
domingo, 9 de novembro de 2008
dormir
Às vezes, viajávamos até essa praia, sem calçada defronte, sem asfalto por perto, sem guarda-sóis ou cadeiras de plástico. Em verdade, era só uma prainha, um tico de água salgada espremido entre duas pedras. Atrás de nós, atrás do mar, havia umas tantas árvores. Não me lembro ao certo como eram, não sei ver a cor ou o desenho das folhas, mas posso encontrar ainda bem viva na memória a sombra imensa que faziam.
Quando íamos a essa praia, de tarde, eu sentia tédio. A maré subia, a água cobria as pedras, e apagava todos os nomes que eu gostava de escrever com os dedos na areia. Não me lembro de nenhum pôr-do-sol, nenhum fim de tarde. Só da água subindo e daquela sensação de fim. Não havia mais quase areia, o que fazer, para onde ir.
Nunca quis voltar lá e ver o mar tomar tudo. Mas hoje tive o súbito desejo de me deitar em uma rede azul que ficava armada, supensa entre aquelas árvores, na sombra larga diante do mar. Só dormir diante daquele mar da infância e não acordar quando houver luz. Nem depois.
Quando íamos a essa praia, de tarde, eu sentia tédio. A maré subia, a água cobria as pedras, e apagava todos os nomes que eu gostava de escrever com os dedos na areia. Não me lembro de nenhum pôr-do-sol, nenhum fim de tarde. Só da água subindo e daquela sensação de fim. Não havia mais quase areia, o que fazer, para onde ir.
Nunca quis voltar lá e ver o mar tomar tudo. Mas hoje tive o súbito desejo de me deitar em uma rede azul que ficava armada, supensa entre aquelas árvores, na sombra larga diante do mar. Só dormir diante daquele mar da infância e não acordar quando houver luz. Nem depois.
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
chover
Cada nova palavra que invento para ajeitar essa sofreguidão me dão a medida de meu fracasso. Não me toque com nenhuma palavra, não me faça lembrar de meus pedaços de saudade, da doçura sem fim que me despertam suas promessas não feitas.
Se a chuva tornar a cair, posso me abandonar por horas diante da janela. Encontrar tristezas antigas, recuperar pedaços velhos das coisas que deixei pelo caminho. Se hoje a chuva voltar, posso perder-me na água que escorre pelo meio-fio até que tudo fique claro e sem nome.
Se a chuva tornar a cair, posso me abandonar por horas diante da janela. Encontrar tristezas antigas, recuperar pedaços velhos das coisas que deixei pelo caminho. Se hoje a chuva voltar, posso perder-me na água que escorre pelo meio-fio até que tudo fique claro e sem nome.
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
florbela espanca
"É esta a história da minha tristeza. História banal, como quase toda a história dos tristes."
arpejo
Posso ouvir a pergunta na minha voz enjoativa. Eu respondo que não. Não estou pensando em você. Não é no seu nome que eu penso quando está escuro e a grande árvore diante da janela ocupa a casa inteira. É só uma imagem que insiste em aparecer, é só a cor da sua pele que eu, desastradamente, aprendi a querer. Vamos passear pelo jardim? Dar voltas em torno do quarteirão? E você promete que respira perto de mim no escuro da sala de cinema?
Volto às mesmas sensações, repito durante o sonho que meu desejo é só mais alguma das minhas bobagens pueris, sem sentido, sem razão. Mas daí me assalta a lembrança das suas mãos, dos seus olhos, imensos, translúcidos, e todas as minhas divagações sobre motivações neuróticas, as incontáveis explicações razoáveis que construí, não valem mais nada.
Volto às mesmas sensações, repito durante o sonho que meu desejo é só mais alguma das minhas bobagens pueris, sem sentido, sem razão. Mas daí me assalta a lembrança das suas mãos, dos seus olhos, imensos, translúcidos, e todas as minhas divagações sobre motivações neuróticas, as incontáveis explicações razoáveis que construí, não valem mais nada.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
não saber
"Não creio na felicidade dos animais, senão quando me apetece falar nela para moldura de um sentimento que a sua suposição saliente. Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não há felicidade em dormir sem sonhos, senão somente em se despertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fora da felicidade. Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber é, porém, não existir."
retorno
No dia em que voltava para casa, havia festa. Era o primeiro aniversário dele. Escolheu o vestido mais bonito, branco, com uma fita longa que servia para dar o laço nas costas, e casinhas de abelha. Todas bordadas em azul marinho.
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Natal e guaraná
A cor pálida, as nuvens pesadas e o cheiro de umidade que impregnava o ar hoje lhe davam a impressão de reencontrar a cidade, de tê-la exatamente como na imagem primeira, 20 anos antes.
Ali, em sua lembrança mais remota, todas as ruas guardavam aquele mesmo tom acinzentado e a chuva estava sempre prestes a desabar.
Devia ser quase dezembro. Entrou no hospital, mas antes de se acomodar no quarto, lhe concederam um último jantar fora dali. Último desejo.
Era um restaurante simples. Acomodada numa mesa no canto do salão, pediu um guaraná, como de costume, e viu o céu pela janela gradeada.
Ali, em sua lembrança mais remota, todas as ruas guardavam aquele mesmo tom acinzentado e a chuva estava sempre prestes a desabar.
Devia ser quase dezembro. Entrou no hospital, mas antes de se acomodar no quarto, lhe concederam um último jantar fora dali. Último desejo.
Era um restaurante simples. Acomodada numa mesa no canto do salão, pediu um guaraná, como de costume, e viu o céu pela janela gradeada.
domingo, 26 de outubro de 2008
perda
Cinza. Chovia e ela se cansou de andar, passou o dia a se sentir culpada pelo tédio que não deveria estar ali, a lhe turvar as sensações, a atrapalhar as emoções que, sim, ela deveria sentir. Ao ter diante de si tantos quadros que amava, tantas cores e traços, esteve desnorteada. Queria ser capaz de sentir mais, de ver mais. A vida, no entanto, estava lá para deixar nítida sua incapacidade, a falta de jeito para o amor, das coisas e das pessoas. Só despertou da anestesia quando atravessou a ponte. Estava ali, bem no meio do caminho, quando o sol abriu. As águas pardas ganharam certo tom de verde, e ela pensou na beleza inteira que cabia na palavra "rio". Ao longe, uma cúpula dourada, que esteve apagada durante todo o dia, ganhava luz própria, e compunha a paisagem. As folhas, amarelas, vermelhas e verdes, surgiam ressaltadas em suas cores. Uma vez mais, contudo, ela teve medo de perder, e não foi capaz de esquecer de si. O sol iria embora, o momento iria se misturar a tantos outros momentos indistintos, mas ela não sabia o que ver, não sabia o que guardar.
banquinho
A falta de jeito, as palavras que não sabia encontrar. E olhava para baixo, sem coragem para lhe mirar os olhos, sem saber se aceitava ou repelia a mão pousada sobre a dela. Pensou em lhe escrever, dizer tudo de outra maneira, mas é como se os fatos tombassem sobre ela. Como se o olhar que ele, fechado em mil camadas sobre si mesmo, lançava sobre as coisas não deixasse nenhum espaço para que tudo fosse diferente
à primeira vista
Parecia tolo apelar para terceira pessoa, mas estava cansada de dizer e de se ouvir dizendo: eu, eu, eu. Durante toda a manhã, uma manhã de sol e calor, perdeu-se em pensamentos inúteis, em detalhes insignificantes, e escrevia mentalmente cada uma das suas impressões sobre o trajeto, aquele caminho tão familiar, que fazia parte de sua paisagem desde que se mudara para aquela cidade.
Lembrava de ter passado por ali tantas vezes. Há dez anos, ela pensou naquele dia de luz pegajosa, cruzara aquela rua de braço dado com o novo amigo. Ele hoje é uma parte dela, um afeto sólido e constante, uma certeza da sua capacidade de se ligar ao outro. Mas, talvez, já o amasse ali. Na história que construiu para os dois (porque ela vive a florear o passado), gosta de pensar que o amou desde o primeiro dia, quando a grande porta de vidro do museu se abriu e ele apareceu, branco, com uns óculos que lhe emprestavam um ar desajeitado e doce.
Lembrava de ter passado por ali tantas vezes. Há dez anos, ela pensou naquele dia de luz pegajosa, cruzara aquela rua de braço dado com o novo amigo. Ele hoje é uma parte dela, um afeto sólido e constante, uma certeza da sua capacidade de se ligar ao outro. Mas, talvez, já o amasse ali. Na história que construiu para os dois (porque ela vive a florear o passado), gosta de pensar que o amou desde o primeiro dia, quando a grande porta de vidro do museu se abriu e ele apareceu, branco, com uns óculos que lhe emprestavam um ar desajeitado e doce.
sábado, 25 de outubro de 2008
fotografia
Nao quero nunca esquecer de sentir saudade. No meio da noite, abro o álbum de fotografias. Ressinto-me do fato de serem tão poucas. Queria ter sua imagem de manhã, o jeito de caminhar pela casa, de ser feliz com as coisas pequenas. Eu ainda tenho a caixinha de madeira, tão pequena, guardada comigo e lá deixo a vida inteira.
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
ensaio
"Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é bem a palavra certa, porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é nossa vida não é o esboço de nada, é o esboço sem quadro”.
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
hoje
Precisava de um poema ontem. Um novo. Os antigos não serviam, nem os trechos de livros que tenho marcados para reler em determinadas situações. Não muda muita coisa, continua a falta de jeito, a sensação de que me perco em voltas inúteis. Mas o poema precisava ser outro e carregar a leveza que me falta.
Canção do dia de sempre
"Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas"
Canção do dia de sempre
"Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas"
do colégio
Não consigo escapar do passado e daquela carteira escolar. Como se desde então eu estive sem lugar. Uma manhã de 1994, eu acho. Tínhamos que ler os dois poemas e não sei ao certo por que me lembro deles de quando em quando.
"se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse
e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra para doer
doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos esta dor sangrasse"
"Chora de manso e no íntimo... procura
curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.
Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será ela só tua ventura...
A vida é vã como a sombra que passa
Sofre sereno e de alma sombranceira
Sem um grito sequer tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira..."
"se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse
e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra para doer
doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos esta dor sangrasse"
"Chora de manso e no íntimo... procura
curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.
Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será ela só tua ventura...
A vida é vã como a sombra que passa
Sofre sereno e de alma sombranceira
Sem um grito sequer tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira..."
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
cartas
Passei a acreditar (ou fingir que acredito) que Rilke me salvou do ridículo das pretensões literárias. Nunca apreciei realmente nada do que escrevi. Meu pendor para ficção é nulo (não consigo sair de mim), os poemas sempre me soaram canhestros, desajeitados.
A livraria ficava em uma travessa da Champagnat, acho que era Antônio Ataíde o nome da rua. Os livros estavam em liquidação e saí de lá com uma seleta de poemas do Shakespeare, o quarto volume do Proust, "Sodoma e Gomorra" (nunca entendi por que começar pelo quarto volume...) e as tais "Cartas a um Jovem Poeta".
Já na primeira carta, uma frase provocou-me um dos aqueles assombros irremediáveis e, desde então me persegue, retornando como um fantasma, de quando em quando.
"Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério - o único existente".
A constatação de que nunca precisei escrever, assim como nunca tive verdadeira necessidade de nada _uma pessoa, um gesto, uma sensação_ passou a me assombrar. E vivo a maldizer essa impressão de ser capaz de sobreviver. De continuar. Não importa se mais ou menos feliz, mas, de qualquer maneira, imune a todas as perdas.
A livraria ficava em uma travessa da Champagnat, acho que era Antônio Ataíde o nome da rua. Os livros estavam em liquidação e saí de lá com uma seleta de poemas do Shakespeare, o quarto volume do Proust, "Sodoma e Gomorra" (nunca entendi por que começar pelo quarto volume...) e as tais "Cartas a um Jovem Poeta".
Já na primeira carta, uma frase provocou-me um dos aqueles assombros irremediáveis e, desde então me persegue, retornando como um fantasma, de quando em quando.
"Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério - o único existente".
A constatação de que nunca precisei escrever, assim como nunca tive verdadeira necessidade de nada _uma pessoa, um gesto, uma sensação_ passou a me assombrar. E vivo a maldizer essa impressão de ser capaz de sobreviver. De continuar. Não importa se mais ou menos feliz, mas, de qualquer maneira, imune a todas as perdas.
terça-feira, 21 de outubro de 2008
1998
Voltei de uma pausa para o café e encontrei a mensagem dele. O título era um daqueles diminutivos que a gente teima em usar há anos... Virgininha. Mandou-me uma música do novo disco da Virgínia Rodrigues, voz que me leva imediatamente dez anos para trás, para a imensa varanda diante do mar, nossas conversas atravessando as madrugadas, o banho salgado antes do amanhecer, as coisas que nos faziam rir e chorar.
"Senti uma vontade muito muito grande de lhe enviar esta música, porque a ouço imaginando que você ouve junto, e que de algum jeito somos os mesmos". Ele escreveu e eu tive ainda mais medo de me perder.
"Senti uma vontade muito muito grande de lhe enviar esta música, porque a ouço imaginando que você ouve junto, e que de algum jeito somos os mesmos". Ele escreveu e eu tive ainda mais medo de me perder.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
plágio
Tenho vontade de copiar poemas dos outros. Um incansável desejo de copiar, de achar palavras certas, de acertar quando e como dizer. Daí meus diálogos imaginários, esse ensaio constante com meus supostos interlocutores. E em silêncio eu falo tanto, que termino por crer, às vezes, que já contei, dezenas de vezes, aquilo que, em verdade, nunca cheguei de fato a dizer.
do caderno
Trazia o poema anotado no caderno. Lembro bem da letra e da cor da tinta da caneta. Era um caderno grande, velho e gasto já na primeira semana de uso, no qual anotava coisas sem importância e contava, sempre com floreios, seus preciosos fatos prosaicos.
"Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não".
"Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não".
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